O passado teórico em novas bases
Retirado de Possibilidades da Política, Por Marco Aurélio Garcia
Em um momento de
grave perda do poder de proposição e persuasão das grandes tradições do
pensamento político, nada melhor do que uma volta às origens e de um esforço
para recuperar elos perdidos ou mal entrelaçados. Se liberais e socialistas,
por exemplo, nas suas variadas famílias e colorações, desejarem voltar a ter
voz ativa nos debates acerca dos dilemas que atormentam as sociedades
contemporâneas, terão de visitar seus mortos e repor em bases renovadas as
poderosas ferramentas teóricas e ideológicas que inventaram para explicar a
vida humana.
Convidar-nos a fazer
essa viagem ao passado teórico com os olhos no presente e no futuro é o maior,
mas não o único, mérito do livro De Rousseau a Gramsci (São Paulo, Boitempo,
2011), de Carlos Nelson Coutinho, filósofo e professor de teoria política da
UFRJ.
Sendo ele um pensador
marxista, leitores mais apressados poderiam achar que seu livro é um empenho
unilateral para demonstrar a “superioridade” de Marx sobre o liberalismo. Nada
mais equivocado. Primeiro, porque Carlos Nelson não é um marxista vulgar,
interessado em elogiar sua “escola” contra as demais. Seu trabalho não é do
doutrinador, mas do pesquisador, do historiador das ideias. Segundo, porque seu
marxismo tem o sabor das vertentes que mais longe levaram a perspectiva
dialética e totalizante anunciada no século XIX por Marx. Trata-se de um
marxista da linhagem de Lukács e Gramsci, e isso deveria dizer tudo. Seu texto
opera com categorias abrangentes mas tem elasticidade para compreender o
dinamismo e o caráter contraditório das estruturas em que flui a vida humana
atual, o lugar que nelas têm os sujeitos individuais e coletivos, as
articulações dinâmicas entre seus vetores decisivos – o indivíduo e a
sociedade, o Estado e o mercado, o todo e as partes.
O resultado nos
convida a refletir sobre a potência das diferentes teorias políticas (e da
sociedade) que demarcaram de modo particularmente intenso o processo de
evolução das duas grandes tradições culturais e ideológicas da modernidade, o
liberalismo e o socialismo. Podemos extrair dele, por exemplo, que as ideias
liberais e socialistas, despidas de seus “excessos” e devidamente
contextualizadas, demonstram ter muitos pontos de contato entre si. Isso,
evidentemente, não elimina o que há de tensão, contradição e distinção entre
elas – cada uma das quais porta uma bem estruturada concepção do mundo e um
arsenal teórico próprio. Socialismo e liberalismo não são irmãos, e seria perda
de tempo apagar suas divergências. São duas tradições distintas, e assim permanecerão,
cada uma com suas apostas, suas convicções e seus códigos de conduta. Mas há
algo nelas que também as aproxima e as alimenta, no mínimo fazendo com que seus
seguidores reduzam suas taxas de autossuficiência e descubram, no outro,
estímulos para se renovar ou corrigir suas limitações. Entre um liberal
democrático e social como Rousseau e um marxista como Gramsci há muito mais
comunidade do que entre Rousseau e um neoliberal ou entre Gramsci e um
stalinista. Rousseau, por sua vez, antecipa teses – sobre a desigualdade, o
interesse comum, o Estado, a liberdade e a democracia – que levariam seu
liberalismo às fronteiras do socialismo e ajudariam Marx em suas formulações.
Afinal, a superação do liberalismo pretendida pelos marxistas jamais significou
a negação das ideias liberais, mas sim, ao contrário, sua superação, a
assimilação do que há de mais avançado nelas.
Não é acidental que o
livro de Carlos Nelson abra com um belo ensaio sobre Rousseau, o democrata
liberal que tanta resistência encontra entre os liberais, siga com um ensaio
sobre Hegel e a “vontade geral” para então desaguar num conjunto de textos
dedicados a Gramsci, o mais universal, polêmico e criativo pensador marxista. O
livro não diz isso, mas é como se dissesse: estão nessas expressões da teoria
política alguns dos mais importantes elos que propiciam a fundamentação de uma
teoria moderna da democracia. Elos tensos, complexos, nada mecânicos. Se
Rousseau descobrira na “vontade geral” o veículo para afirmar a prioridade do
público sobre o privado, Hegel buscaria a conciliação entre a liberdade
individual e uma ordem social realista na qual o Estado responderia por funções
construtivas fundamentais, como garante da vontade geral. Tal inflexão, que
alargou o liberalismo, desembocaria em Marx e ganharia plena expressão com
Gramsci, que refunda a teoria do Estado sem subsumir a ela a democracia e a
liberdade individual.
Seria pertinente
perguntar o que teria levado liberais e socialistas, com suas ideias tão
carregadas de convergências potenciais, a construir trajetórias tão díspares e
competitivas. Uma resposta seria: sempre que a questão democrática substantiva
(ou seja, não meramente procedimental) foi privilegiada, como em Rousseau, Marx
e Gramsci, liberais e socialistas puderam caminhar juntos e se retroalimentar.
Talvez seja por isso que o livro marque muitos pontos ao sugerir que “uma
teoria da democracia adequada ao nosso tempo” só poderá ser elaborada mediante
um “profundo diálogo com a herança de Rousseau”, a incorporação das “contribuições
decisivas” de Hegel e a devida atualização do marxismo e da tradição
socialista, para o que Gramsci fornece base rica e consistente.
Livros como esse
abrem enormes clareiras para o pensamento crítico interessado em agir sobre o
mundo. [Publicado em O Estado de S. Paulo, Caderno Sabático, 15/06/2012, p.
S7].
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